Contava eu dezenove anos quando cheguei à casa onde morava em Cambridge e me deparei com uma cena insólita. Isso porque a família Hirst – minha anfitriã – estava engalanada. James envergava um smoking que bem poderia ter brotado das mãos de um alfaiate da Savile Row. Ela, a pequena Audrey, retocara as mechas grisalhas e, loquaz como nunca, sacudia sua verve dentro de um tomara-que-caia de paetês. Nas mãos de ambos, um copo de gim. Na vitrola, Sinatra. Nos olhos azulados dela, um brilho raro, quase lascivo. Na atitude dele, uma exuberância discreta, porém altiva. O que acontecera ao pacato casal de classe média britânico? Aniversário de casamento? Nada disso: a mãe de James falecera naquela manhã. Muito bem. Sei que a morte de entes queridos pode desencadear reações estapafúrdias. Uns choram, outros bebem e muitos até conciliam essas atitudes. Mas aquela comemoração era tão insólita quanto a explicação com me brindou Audrey para o esfuziante astral reinante: a sogra estava desenganada. Sim, confirmei. Logo sua morte fora um alívio e sair para dançar era uma forma de relaxar as tensões por que passara James, explicou-me com um sutil laivo de culpa. Aliás, não teríamos jantar em casa naquela noite. Pensando em mim, contudo, Audrey deixara salsichas com purê no forno. Era só esquentá-las, comer e ir estudar, recomendou maternalmernte. Poderia eu jurar que ficaria bem? Claro, Mrs. Hirst.
Lembro que ainda tartamudeei uns pêsames, louvei a atitude do casal face à fatalidade, recusei um drinque e já ia para o quarto quando me ocorreu perguntar pelo corpo da falecida. Como se falasse de uma vassoura extraviada, ela apontou o cômodo dos fundos da garagem onde a velhinha vivera ultimamente. O serviço funerário só a recolheria ao necrotério na manhã seguinte, sussurrou. Não havia urgência; afinal era inverno e o sepultamento só aconteceria em uma semana, quando os netos chegassem do Canadá e da Austrália para a cerimonia fechada. Em suma: o casal iria encher a cara e esperava que eu ficasse só em casa com um cadáver. Disfarcei o pânico, peguei a bicicleta e fui procurar abrigo no Red Cow, meu pub favorito, onde pensaria.
Foi nessa noite que pedi asilo aos amigos mais próximos, acorrendo à casa de Fernando Henrique Cardoso, cuja filha, Bia, eu conhecera na escola. Foi por essa ocasião - em que a excentricidade inglesa mostrou a que veio - que D. Ruth riu com gosto dos disparates que eu narrei com sofreguidão e assombro. Enquanto eu me contorcia para achar uma explicação "inteligente" à luz de meu humanismo de botequim, ela, a antropóloga de verdade, foi implacável: "Ora, Fernando, pra que complicar? Será que é mal do nome? A coisa é simples: eles agora vão dispor de mais um quarto para alugar para estudantes. É reforço no orçamento, é mais uma semana de férias em Ibiza todo ano. E só."
Há poucos meses atrás eu jantei com o ex-presidente em Telavive. Rememoramos com alegria aqueles anos em que Chico Buarque nos acalantava. Pensei até em recordar-lhe o insólito episódio da família Hirst, mas achei que os poucos comensais à nossa volta mereciam relatos mais sóbrios e ficamos no aprisco seguro dos atores vivos da política. Lembro que ele se referiu a um almoço recente que tivera com a esposa, os casais Bill Clinton e Larry Summers, este último o ex-reitor de Harvard. Falando sobre a familiaridade dos participantes com os dossiês mundiais, externou admiração por Hilary com fidalguia: "De todos nós, ela é mais preparada. Mais do que eu e o Bill. Tem horas que nem a Ruth é páreo para ela".
Hoje é quarta-feira, estou em Barcelona e o sol brilha sobre o mesmo Mediterrâneo diante do qual fomos tão felizes ainda no último outono. Abro a internet e me deparo com a notícia da morte de D. Ruth. Na foto da tela, sinto a dor lancinante do Presidente e a beleza do mar de repente me agride. Não era aqui que eu gostaria de estar agora. Era lá em São Paulo, onde vivo. A tela do computador fica embaçada, resisto à sensação de tontura momentânea e a admiração que não quer calar me impele a registrar este testemunho bisonho, porém comovido. Com o desaparecimento de D. Ruth se vai talvez o referencial civilizatório máximo que o Brasil tenha cravado em 508 anos de história.
Entrementes, força, Presidente. Por todos os motivos, não seria menor a falta que o Sr. nos faria.
Lembro que ainda tartamudeei uns pêsames, louvei a atitude do casal face à fatalidade, recusei um drinque e já ia para o quarto quando me ocorreu perguntar pelo corpo da falecida. Como se falasse de uma vassoura extraviada, ela apontou o cômodo dos fundos da garagem onde a velhinha vivera ultimamente. O serviço funerário só a recolheria ao necrotério na manhã seguinte, sussurrou. Não havia urgência; afinal era inverno e o sepultamento só aconteceria em uma semana, quando os netos chegassem do Canadá e da Austrália para a cerimonia fechada. Em suma: o casal iria encher a cara e esperava que eu ficasse só em casa com um cadáver. Disfarcei o pânico, peguei a bicicleta e fui procurar abrigo no Red Cow, meu pub favorito, onde pensaria.
Foi nessa noite que pedi asilo aos amigos mais próximos, acorrendo à casa de Fernando Henrique Cardoso, cuja filha, Bia, eu conhecera na escola. Foi por essa ocasião - em que a excentricidade inglesa mostrou a que veio - que D. Ruth riu com gosto dos disparates que eu narrei com sofreguidão e assombro. Enquanto eu me contorcia para achar uma explicação "inteligente" à luz de meu humanismo de botequim, ela, a antropóloga de verdade, foi implacável: "Ora, Fernando, pra que complicar? Será que é mal do nome? A coisa é simples: eles agora vão dispor de mais um quarto para alugar para estudantes. É reforço no orçamento, é mais uma semana de férias em Ibiza todo ano. E só."
Há poucos meses atrás eu jantei com o ex-presidente em Telavive. Rememoramos com alegria aqueles anos em que Chico Buarque nos acalantava. Pensei até em recordar-lhe o insólito episódio da família Hirst, mas achei que os poucos comensais à nossa volta mereciam relatos mais sóbrios e ficamos no aprisco seguro dos atores vivos da política. Lembro que ele se referiu a um almoço recente que tivera com a esposa, os casais Bill Clinton e Larry Summers, este último o ex-reitor de Harvard. Falando sobre a familiaridade dos participantes com os dossiês mundiais, externou admiração por Hilary com fidalguia: "De todos nós, ela é mais preparada. Mais do que eu e o Bill. Tem horas que nem a Ruth é páreo para ela".
Hoje é quarta-feira, estou em Barcelona e o sol brilha sobre o mesmo Mediterrâneo diante do qual fomos tão felizes ainda no último outono. Abro a internet e me deparo com a notícia da morte de D. Ruth. Na foto da tela, sinto a dor lancinante do Presidente e a beleza do mar de repente me agride. Não era aqui que eu gostaria de estar agora. Era lá em São Paulo, onde vivo. A tela do computador fica embaçada, resisto à sensação de tontura momentânea e a admiração que não quer calar me impele a registrar este testemunho bisonho, porém comovido. Com o desaparecimento de D. Ruth se vai talvez o referencial civilizatório máximo que o Brasil tenha cravado em 508 anos de história.
Entrementes, força, Presidente. Por todos os motivos, não seria menor a falta que o Sr. nos faria.
Fernando Dourado é pernambucano, consultor de empresas em São Paulo e autor do livro "Viajante de Corpo e Alma – Crônicas de um Andarilho Global".
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